Ludopatia, o vício em apostas (bets) e jogos online: como tratar?

O fenômeno silencioso que cresce com a digitalização do prazer e do risco

TERAPIA INDIVIDUALSAÚDE MENTAL

Paula S'corsato

6/24/20255 min read

A normalização das apostas online mudou drasticamente o perfil e a velocidade com que o vício em jogos se instala. Em vez de ser limitado a ambientes físicos como cassinos ou bingos, o jogo agora está nas telas, nos celulares e nos aplicativos, sempre acessível e amplamente promovido por influenciadores, atletas e criadores de conteúdo. Essa nova forma de consumo trouxe à tona um problema de saúde mental cada vez mais urgente: a ludopatia.

Ludopatia é o termo clínico que designa o transtorno do jogo. Trata-se de um vício comportamental no qual o indivíduo perde o controle sobre suas apostas, mesmo sofrendo consequências negativas. A compulsão em apostar não é apenas um mau hábito, mas um transtorno complexo que afeta a autoestima, os relacionamentos, a saúde financeira e o bem-estar físico e emocional.

O cenário se torna ainda mais preocupante com a popularização das chamadas bets, plataformas de apostas esportivas que simulam uma experiência de domínio e estratégia, mas operam essencialmente a partir do acaso. A rapidez com que os jogos acontecem, a aparente facilidade de ganho e a ilusão de controle criam um terreno fértil para o desenvolvimento da dependência.

Como o cérebro reage ao jogo

O vício em apostas ativa o sistema de recompensa do cérebro, o mesmo envolvido em dependências químicas como álcool ou nicotina. O responsável por isso é a dopamina, neurotransmissor liberado em situações de prazer ou expectativa de recompensa.

Quanto maior a incerteza do resultado, maior a excitação produzida. Cada pequena vitória se transforma em um reforço positivo, alimentando o ciclo do jogo. Já as perdas, ao invés de interromperem o comportamento, geralmente despertam o desejo de recuperar o dinheiro perdido.

Esse fenômeno, conhecido como reforço intermitente, é uma das bases neurológicas da ludopatia. O indivíduo sente que está quase ganhando o tempo todo e que a próxima jogada pode ser a decisiva. A mente se convence de que é apenas uma questão de tempo ou estratégia, quando na verdade está presa a uma engrenagem emocional que atua fora do controle racional.

Quando o jogo deixa de ser diversão

É importante reconhecer os sinais de alerta que indicam que o jogo deixou de ser uma atividade ocasional e passou a se tornar um problema real. Entre os principais indícios estão a necessidade de aumentar o valor das apostas para sentir emoção, mentiras recorrentes para esconder o quanto se joga, dificuldades financeiras crescentes e isolamento de familiares e amigos. Também é comum a pessoa tentar parar de jogar repetidas vezes sem sucesso, ou usar o jogo como uma fuga emocional para lidar com estresse, frustração ou solidão.

Esse tipo de comportamento costuma se desenvolver de forma progressiva e silenciosa. Em muitos casos, o próprio apostador demora a perceber a gravidade do que está acontecendo. A sensação de domínio sobre a situação é ilusória e, quanto mais tempo se leva para procurar ajuda, mais difícil se torna romper com o ciclo de dependência.

O impacto emocional da ludopatia

Além das perdas materiais, o vício em apostas tem um impacto profundo na saúde mental. É comum que pessoas com ludopatia desenvolvam quadros de ansiedade, angústia constante, crises de pânico e sensação de perda de identidade. Muitas vezes, o sentimento de vergonha impede que elas busquem ajuda, o que aprofunda o isolamento social e a culpa.

É fundamental entender que a compulsão pelo jogo não é um problema de caráter ou de força de vontade. Ela está relacionada a padrões emocionais desregulados e, frequentemente, a traumas não elaborados que encontram no jogo uma forma de anestesia temporária.

Caminhos para o tratamento

Romper com a ludopatia requer mais do que o simples corte do acesso aos sites de aposta. O tratamento efetivo precisa abordar tanto o comportamento compulsivo quanto as causas emocionais que o sustentam.

Por isso, a terapia individual é uma etapa essencial nesse processo. Ela oferece ao paciente um espaço seguro para compreender sua relação com o jogo, identificar padrões de pensamento disfuncionais e desenvolver novas estratégias de enfrentamento.

Em muitos casos, especialmente quando há sinais de trauma ou bloqueios emocionais mais profundos, a Experiência Somática SE se mostra uma abordagem extremamente eficaz.

Baseada na neurofisiologia, essa técnica atua na autorregulação do sistema nervoso, ajudando o indivíduo a processar estados internos que alimentam o impulso pelo jogo. Ao restaurar a conexão com o corpo e suas sensações, a pessoa recupera também sua capacidade de tomar decisões com mais consciência e presença.

Outra ferramenta valiosa no tratamento da ludopatia é o CardioEmotion. Trata-se de uma tecnologia que utiliza sensores e inteligência emocional para mapear em tempo real os estados fisiológicos relacionados ao estresse, ansiedade e excitação.

O sistema oferece feedbacks personalizados que auxiliam o paciente a reconhecer gatilhos emocionais antes que eles se transformem em comportamentos automáticos. A partir dessa percepção, é possível criar uma rotina de autorregulação que fortalece o autocontrole e previne recaídas.

O papel da família e do ambiente

Nenhuma recuperação acontece em isolamento. A participação da família e de pessoas próximas é um elemento decisivo no tratamento. Muitas vezes, os familiares também sofrem com os impactos da ludopatia e precisam ser acolhidos em suas dores, para que possam oferecer apoio real sem cair em dinâmicas de cobrança ou julgamento.

Criar um ambiente que favoreça a recuperação inclui a redução de estímulos relacionados ao jogo, a construção de novas rotinas e a valorização de atividades que promovam prazer saudável.

Esportes, práticas artísticas, espiritualidade ou envolvimento com causas sociais podem funcionar como substitutos potentes da excitação promovida pelo jogo, oferecendo satisfação emocional com mais estabilidade e segurança.

A urgência da prevenção

Embora o tratamento da ludopatia seja possível e eficaz, a prevenção é sempre o melhor caminho. O acesso irrestrito às apostas online por jovens e adolescentes exige atenção especial.

É preciso que famílias, escolas e instituições se envolvam ativamente na construção de um ambiente digital mais seguro, onde a educação emocional ocupe um espaço central.

Ensinar desde cedo sobre autorregulação, frustração, impulso e recompensa é uma forma de blindar emocionalmente as novas gerações contra comportamentos compulsivos.

Além disso, é urgente debater a forma como a mídia e as redes sociais promovem o jogo, muitas vezes romantizando o vício sob a promessa de liberdade financeira.

Um recomeço possível

Viver em recuperação é mais do que parar de jogar. É reconquistar autonomia, dignidade e equilíbrio emocional. Pessoas que enfrentam a ludopatia e buscam tratamento com apoio profissional têm grandes chances de superar o vício e reconstruir sua vida com sentido e propósito.

A jornada pode ser difícil, mas ela é real e está ao alcance de quem decide dar o primeiro passo. O jogo não precisa ser a única fonte de emoção ou sentido na vida. É possível sentir prazer, excitação e satisfação a partir de conexões saudáveis com o mundo, com os outros e, principalmente, consigo mesmo.

A ludopatia tem tratamento. A vida, quando reconectada com consciência e apoio, sempre oferece alternativas mais justas, livres e humanas.